quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Pés no Chão

Quando, há três anos, decidi colocar a proximidade da praia acima de outros detalhes considerei, sim, os negativos, mas nada que eu não pudesse contornar mantendo os hábitos que já me eram caros, entre os quais sair de casa todos os dias, ao menos uma vez por dia.

Apenas duzentos metros me separavam do jardim da orla. Foi o que me restou após o golpe do destino, que me tirou a vista do mar (leia o poema 'Paisagem' de 23/05/2015 neste blog) junto com a confiança no outro.

Já não tinha a vista, mas bastavam alguns passos largos e logo estava com os pés na areia. Esses passos encontravam degraus no caminho, em três lances. Para descer "todo santo ajudava" e para subir contava com a minha boa forma física. Um nível de dificuldade era somado quando havias sacolas de compras ou uma mala de viagem mas, nessas horas, eu procurava focar no prazer das recentes aquisições: objetos, comidas, bebidas e lembranças do passeio. A gratidão pela bagagem não vem assim tão fácil; é também um esforço que se faz, fortalecido pelas reflexões da maturidade.

Para obter uma carga mais leve, aprendi a colocar menos coisas na mala e a comprar apenas o necessário para o dia ou para poucos deles. Isso também é evolução, afinal. E como não era sacrifício algum sair para caminhar todos os dias e na volta passar no mercado ou loja, a minha rotina estava tranquila, com doses diárias de luz solar, seja na praia ou nas ruas...

Quando veio a pandemia e a ordem de ficar em casa com a possibilidade de fazer as compras do telefone celular ou computador, senti a falta da vista, pois agora se a quisesse teria que ir buscá-la com meus próprios pés, "bater as pernas". Quando recebia as compras, eram em maior quantidade e não tinha a coragem de pedir para o entregador subir as escadas com elas, achava que era um abuso do seu serviço, já tão mal remunerado. Então, quando não estava disponível a ajuda de um dos filhos, fazia algumas viagens até trazer tudo para dentro do apartamento. Nessas horas focava em meus músculos e como uma atividade física extra. Ah, a maturidade!

Mais do que a vista, sentia a falta de estar fora de casa, ao ar livre, e então decidi que queria "o meu lugar ao sol". Poderia ser uma varanda ou um quintal. Escolhi o quintal, pois as varandas no alto dos edifícios pressupunham o elevador e este estava elencado como um dos ambientes mais inseguros e propícios ao contágio. Além disso, desenvolvi uma certa fobia às pessoas; não às pessoas em geral mas às sem noção ou educação, que recentemente saíram do armário (abriram-lhes a porta!) e pareciam maioria nas ruas.Assim, nesses sete meses de confinamento, fui por duas vezes à praia e não me senti bem: nada confortável usando a máscara e sempre alerta quanto aos que não a usavam.

Um acontecimento apressou essa minha decisão: ao abaixar-me para erguer sacolas (nem tão pesadas!) do chão, acometeu-me uma dor lombar aguda, que se prolongou por dias e me deu o diagnóstico de hérnia de disco vertebral. Estudei a respeito e soube que se deve mais à predisposição hereditária, com algumas características psicoemocionais, como a de "carregar o mundo nas costas", do que por falta de exercícios, já que eu os estava fazendo regularmente, inclusive com alongamentos e fortalecimento abdominal.

Bem, o fato é que a vontade do meu lugar ao sol virou ideia fixa a martelar em minha cabeça por alguns dias. Na verdade, bem poucos dias...

O ideal seria uma casa, o mais isolada possível. Mas a necessidade de segurança e acesso, econômico e de mobilidade urbana, me fez escolher um apartamento térreo e bem localizado. Não tenho um Quintal, mas um quintalzinho: as minhas plantas adoraram! E eu também!

Com a mudança abrupta, sem a condição de um planejamento mais demorado, pois era "pegar ou largar" a oportunidade que me apareceu rapidamente, precisei para o meu novo lugar, priorizar algumas coisas em detrimento de outras. No caso, os livros foram priorizados.

Assim que, como na nova canção, o meu quarto tem hoje "cores de Almodóvar, cores de Frida Khalo" (ouvir 'Esquadros' de Adriana Calcanhoto),guarda roupas , sapatos e agora muitos, muitos livros.

Os armários-estantes, de cores fortes, já foram "o quarto de brinquedos dos meus meninos" (leia o poema 'Dona de Nossas Manhãs' de 07/12/2011, neste blog) , e contrastam com as mesas de cabeceira que foram da minha avó, igualmente marcantes no tom que escolhi pintá-las sem adivinhar esse inesperado arranjo. Referências afetivas não faltam nesse meu novo lar, onde viajo - eu, fio-terra com meus sonhos - com pés no chão. No chão, mesmo!